segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

PRIMEIRA OVERDOSE

«Os sete anjos que tinham os setes flagelos saíram do templo, vestidos de linho puro e resplandescente, cingidos ao peito com cintos de ouro. Um dos quatro Animais deu-lhes então sete taças de ouro, cheias da ira de Deus que vive pelos séculos dos séculos. Encheu-se o templo de fumaça provinda da glória de Deus e do seu poder. E ninguém podia entrar enquanto não se consumassem os sete flagelos dos sete anjos.» Apoc. 15,6

alguma coisa parece escapar, você entendeu e fingiu não entender – sob essa noite cheia de estrelas, os teus vermelhos olhos refletem o mistério das estrelas. Quem sou eu ou onde está meu amor agora, seriam perguntas inacetáveis, irrespondíveis. Porque embora noite, embora ventasse algo borbulhava em calor, a água fluia da pele seca de quem ama e as tuas mãos não cabiam nas tuas mãos. Hoje eu ajoelho sobre o milho seco, e me perco em alguma ausência, pois assim, poderei lhe dar o que quiseres e lhe darei também três chaves, em três formas – uma porta está ao sul, outra ao leste, outra ao oeste.
e não era só isso, se lhe perguntassem o porquê de teu nome, diria que teu pai inventara, em algum lapso de loucura, diria cinco letras. Diria que não é mais possível saber o porquê, dobraria a face em fuga. Só queria saber de ti uma maneira de começar o dia, como num verso antigo. Por que não dizer o que a alma cogita? Por que fantasiar teus olhos caídos? Pra que esconder as labaredas da escuridão? Diria que não era possível e que a água não tornar-se-ia vinho, mas da minha fé, da mais secreta fé, eu podia saber e desejava calmo correr pelos teus campos todas as manhãs.
quando não, ela sabia, melhor que ninguém, o que se perdia o que se ganhava, estava por dentro do jogo, numa matemática sóbria, mas era também porque não estava sozinha, aquele mesmo anjo que a maltrava, a puxava de volta, a lambia. Uma cadela em pleno cio, atravessava a rua, e a dona já meio virada do álcool sussurava alguma coisa, que aqui ninguém podia ouvir. Mas era aqui, era aqui que eu quereria estar, era de reencostar minha cabeça nos teus ombros ávidos que eu falava.
eu podia te prometer, teu pai não iria mais te machucar, eu limparia teus olhos, com todo o cuidado para não borrar tuas chamas, para não apagar o fogo, eu te faria brilhar de novo, como o sol dessa manhã procurando espaço juntos às nuvens. Será que bastaria qu’eu lhe contasse mais um sonho burguês? Você soltaria os cachorros, ainda que soltar os cachorros significasse abandonar o teu pai, significasse correr pela rua, atrás dos cachorros, significasse antes de tudo morder, rosnar, deixar o ódio tomar o corpo. A lua viria? Esta noite tem tantas estrelas, está falhada, sem lua, da mesma vergonha de uma moça sem maquiagem, era essa noite. E os cães uivariam pra que prometida lua, se então ela não vinha?
e era cheiro de ódio, de um ódio seco, ainda infantil – um ser que desconhece os pantânos, dos quais me afundo e te afundas, era seco o ódio que não podia ser chorado, que não podia ser sentido em teu grau máximo. Pediu ao Deus que o ódio durasse, não passasse, que fosse possível tornar tudo isso material, quando houvesse tempo e que a loucura, fosse realmente dessa vez, apenas loucura.
pra que continuavas a te enganar? parecia ser tão difícil dizer “não consigo”, que era preciso estar sempre remontando o castelo na areia, que o vento, o vento insistia em levar, breve, dando outras curvas, demolindo os sonhos. Talvez fosse melhor que parasse por aqui, não posso enxergar, desta noite, nada além do mar, quase sem maré, recolhido para poder refletir, para poder se curar. Me lembro do teu cheiro, mar, gravado em conchas, aprisionados na matéria do tempo – pois quantos homens já morreram em teus braços e quantos ainda arqueavam viris braços à tua procura – ouço teu grito soberano pelo buraco da concha moldada.
porque subitamente me acertaria com teu machado, e meu sangue não era apenas sangue, mas era a tinta sólida com a qual gravarias a tua vitória. Me parece que a águia ainda não aprendeu a lição, e o Deus não perdoaria essa liberdade, pois até para se voar é preciso pedir licensa ao vento. E d’outro lado, a tartaruga imóvel teria encontrado algo tão grande, algo tão poderoso, que nessa estação ia se recolher, confiante da sua dura natureza – talvez chovesse ainda – mas a menina parecia não acreditar, ou talvez nem pudesse, era da tartaruga imóvel em sua renúncia que lhe o brotava o mais nobre sentimento humano: a humildade, porque era também da terra, dessa areia meio úmida, era da própria mãe que falávamos.
e se ela voltasse, como poderíamos dizer não quando se quer dizer sim, e porque ainda assim, não passariámos a delicada fronteira plasmática que nos envolve, me encantaria entender por que temos sido tão rebeldes, por que puxamos a carne com tanta força.
mas eu sei porque destes risada, é que nossa riqueza é tão frágil.E era por cercar os terrenos que não eram nossos, era porque faziam das praças, públicas, sem ao menos ouvir o que aquela senhora tinha a dizer, sem saber que ela se sentia culpada de gerar e abandonar aquela criança. Não são tuas calças rasgadas, nem teu canivete, era d’esse teu olho que pede perdão, você daria tudo para estar longe do sol, desse sol que queima, queima, queima. Mas me abraça, faz de conta que eu te perdoei, para você poder se perdoar, quem sabe perdoar à Deus. Quero ver-te bem, quero vê-lo bem, vestidos de branco – sem câmera, sem juiz.
fico feliz de saber que não estais sozinha, ela estará do teu lado, e não te obrigará que preenchas a ausência, mas que ausente, preenchas a beleza do mundo. Dói tanto pra ela, guri, dói pra ela te ver de branco, e pensar que ainda assim há um sorriso na tua boca, dói pra ela saber que daqui a pouco ela vai esquecer teu rosto, como esqueci, para subitamente lembrar quando mais possível – foste mais humana que mãe.
dessa dúvida não viveria, esse ar fresquinho de manhã brotando, agora anuncia o fim do julgamento. O outro sol viria, talvez nem completasse a tarde e era por isso que talvez corríamos tanto, era preciso deixar ao mundo uma reposta, ainda que não houvesse testemunha, era para que a alma levasse consigo os amores, os gozos.
e era preciso ter muita coragem para se ser louco, fugir não é mais fácil, nem mais difícil que enfrentar. Oh doce águia voltarás? eu corto as unhas em respeito a teu corpo ferido, e quando voltares, eu cuido de tuas asas.
espero viver o tempo bastante para esquecê-lo, não suportaria uma morte que é também falta dele. Pois onde haveria plenitude, seu eu ‘inda o tivesse figurado na minha cabeça?
para além, compreendo que os gatos precisam de um gesto, de uma pequena certeza, nisso diferem dos cães, nisso diferem de ti. Cada vez tenho menos a te dizer, que parece também que cada vez menos você compreende; e ficar alimentando uma árvore seca em troca de alguns pinhões, que a cada ano que passava, vinham menos. Mas vou ficar novamente acordado aguardando o parto, aguardando a tempestade passar.

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