domingo, 23 de maio de 2010

Poltrona nº 5 - Janela


“E o amor foi entendendo assim, que não era amor. Estava amor”

Não teria por onde ficar senão junto a ele, de resto não conhecia ninguém. Insisti, sem lembrar, que ele não é de ninguém. Fomos viajar. Todos o tinham, enquanto eu sonhava um mundo onde não houvesse ninguém, ou que ainda que houvesse, ninguém pudesse nos ver, e que visse não achasse graça. E enquanto sonhava, controlava meus lábios que queriam sorrir, mas só podiam sorrir no sonho, afinal alguém perceberia. Não que o problema fosse alguém perceber, o difícil seria explicar, a quem percebesse, o que não me foi explicado, explicar que apenas amamos e sonhamos com um amor que não sonha conosco, e que sabemos, no fundo, que esse amor também sonha conosco, talvez em nível inconsciente, e então, teria que lembrar das aulas de Jung, e não haveria resposta, e ainda, se perguntassem: “há algum problema?”, diria que não. Não há problemas com amor, não nesse estágio, onde tudo está declarado, mas não obtivemos resposta, um malote do correio que se extraviou por aí. Acontece que tudo isso é feito um dente cariado: quanto mais se toca, se mexe, se cutuca, mais dói e ao mesmo tempo é irresistível não tocar, não mexer, porque no fundo alguma coisa já dói.

As luzes do ônibus acenderam. O grande problema dos ônibus, além do banheiro, é os assentos serem colocados em forma de casal. Nem todos somos casais, e nem o formato implica que devemos ser. Porém acontece que se não somos, ou sentamos sozinhos, se não estiver cheio, ou alguém senta do nosso lado e então se fica a ouvir música, a ler, ou a vigiar quem realmente interessa. Contudo algo me diz que o problema não são os ônibus. Sentei junto a ele, não somos um casal, mas é preciso ter compaixão, afinal até eu que escolhera e torcera por estar sentado assim, ao lado dele, não sei o que dizer, só sei que esse silêncio estranho que fica entre nós tem um som de mosca rondando um bife, um gigantesco ponto de interrogação parado no meio da rodovia às oito horas da noite. Haveria de se conversar o que já se sabia um do outro, para não correr o risco de entrar num campo desconhecido, onde perguntas, de certo ficariam sem resposta, ou então, inventar um cansaço e dormir enquanto o ônibus, no seu doce balançar segue viagem. É sempre seguro sentar à janela, qualquer distração, ou falta de interesse e jeito pode ser justificado por apenas estar vendo a paisagem ou a lua. A lua hoje está exatamente cortada a sua metade, nem cheia, nem nova, mas procurando talvez no seu ciclo vital onde ficara seu par. “A metade que falta virá”, eu disse sem perceber que dizia. “O que? Que metade?”, eu sorri. Talvez a metade não virá de ponto algum, porque, na verdade, ela já está, ainda não se mostrou, ainda não foi preciso chorar, nem de dor, nem de alegria, como um malote do correio que extraviou e talvez chegue e como um dente, que sem mexer, já dói, mas ainda não precisa de dentista.

O ônibus parou bruscamente. A algazarra tomara conta: “Será que foi um acidente?”, “Acho que é bicho, na pista”. Talvez fosse um acidente, ou um bicho na pista, o fato é que no parar brusco do ônibus alguma coisa brusca, em nós, também parou. De repente estávamos, olhando, ainda que por um breve momento, um no olho do outro, com uma avidez profunda, como se naquele instante pudéssemos nos render, esquecer os medos, as escolhas, os ideais, e simplesmente amar, sem gesto, ou fala, ou beijo, ou qualquer outro carinho. E então lembramos que há a morte. É bom que haja a morte, para que a lua encontre seu par, para que os olhos se encontrem, para que lembremos que, como há a morte, também há a vida e que medos, escolhas, ideais são como roupas que nos protegem da aridez deste vento frio de inverno, mas que delas, nada levamos. “O amor não tem roupas, máscaras, nem chapéu”, eu disse. Ele sorriu, mas fingi que via o que se passava pela janela. Sentei à janela, sempre sento à janela, é mais seguro. Não era bicho, nem acidente, era só uma fila de carros que se congestionavam e ferviam ansiosos. E o ônibus voltou aos poucos ao seu estado: balançando leve, pessoas lendo, ouvindo músicas, conversando o que já se sabe e querendo descer para tomar café, comer pão de queijo, fumar um cigarro... Até que chegara um ponto em que quase todos adormeceram, enrolados em cobertores, afogados em colos alheios, apenas algumas luzinhas continuavam acesas, despertas pela insônia e a ansiedade de se chegar. Ele havia adormecido e agora eu poderia observar bem de perto aquele rosto, que nunca tivera coragem de encarar, não poderia ver os olhos, já que estavam fechados, mas na freada brusca do ônibus, o olhar dele já estava em mim, bastava, então era medir cada centímetro daquela pele marcada por pontos minúsculos, dos pelos rasos que insistiam em crescer pela borda, do cheiro sem gosto que vinha da nuca e era só dele. Era um rosto comum, não tinha nada de diferente e era que isso que mais me intrigava, quando encostei de volta a cabeça no assento fiquei pensando: “Talvez o sorriso, talvez tenha me apaixonado pelo sorriso”. Olhando de volta para a janela vi a lua, mais branca ainda, perdida no espaço, rodeada de estrelas, lembrei de um frio antigo, um frio gostoso que a gente sente quando é criança, um frio que tem gosto de sopa, de chocolate quente, gosto de abraço de mãe. E embora as janelas fossem fechadas, fazia frio, queria cobri-lo, proteger como um abraço, mas sentei à janela. Ele ao corredor, podia pegar a coberta, eu se levantasse estragava esse friozinho, feito aquela dor de dente. Não vou mexer. Nem posso te tocar, ao menos que fosse sem querer e a gente sempre encontra um jeito de fazer as coisas, para que pareçam por acaso. Minha mão bem perto da tua, o assento em posição de repouso, o balançar do ônibus, a mosca, o dente, a lua, o correio, o friozinho gostoso da infância foram seguindo pr’um túnel de concreto todo iluminado até que eu adormeci.
Sexta-Feira, 21 de Maio de 2010

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