Tenho sentido falta duma amizade antiga. Onde os amigos não se doem, nem se machucam. E que abrem portas, entrem, tomem o seco do vinho e enquanto falam com seus cigarros, secos também, inspirem e expirem as dores de sempre. Na tina, vovó lavou a roupa que mamãe vestiu quando foi batizada, mas isso é coisa da antiga.
Não. Foi um engano. Vovó não morreu, desenterraram-na ontem, estava magrinha e suas mãos cheiravam terra. Mas era uma terra verde, sem aquele cheiro do que já foi embora, sentada na sala, com seu peso ancestral, parecia um Orixá Africano, talvez Ogum, talvez Iemanjá. Parecia uma pomba, inteira na calçada, enquanto sorri, apenas espera migalhas de pão. De repente, não há mais por que cruzar os braços, ou esticar as veias do pescoço, ou sentar feito moça: o medo se perdera por aí, os amigos também. Vovó estava sentada no meio da sala, c’um sorriso besta que parecia dizer: “Vocês não sabem nada, meus filhos”. Eu duvidava, enquanto agarra sua magreza, como quem devora o último pedaço de pudim, toda vestida d’um suferino da melhor fêmea que a vida fêz, que variava entre o azul do mar, e o vermelho da guerra.
Unesp estava cheia nesse sábado morno, era uma espécie de festa que perdura por horas, uma espécie de história com vários capítulos. Subi de carro, até a faculdade. E as pessoas bebiam e comiam e se falavam, enroscadas a bicicletas, motos barulhentas e saias de hippie bailando sobre o asfalto. Eu quereria me enroscar também, talvez encontre essa coisa que se perdeu, mas que inda cheira verde. Um amigo me tocara o braço, disse lhe que as coisas vão bem, contei-lhe que estava feliz, enquanto secava a caneta, me sorria feito um bobo, e falava que suas coisas caminhavam também. Ele não queria seguir, mas parece que procurava alguma coisa que é viva e se perdeu, é que no meio da mata, todos nós somos solitários. Compreendi, tenho compreendido quase tudo, aprendendo a inverter os pólos olhei pro céu, prometia chuva, chuva grossa, pra acalmar essa brancura tensa que se instalara do céu. Não gosto da palavra firmamento, me lembra uma coisa firme, segura, estável, talvez a um azul celeste caiba firmamento, mas um branco que se move, uma gira de cores que se confundem, prefiro o nome céu. Acendi um cigarro e sentei num banco de cimento, a espera que um vento novo me arraste pr’outro canto.
Mayara, a caçula, fora com Papai ao supermercado. As filas se esticavam até as prateleiras, e as moças do caixa batiam as teclas acostumadas enquanto secavam o suor do meio dia. O pai devia estar a procura de um bom azeite, era preciso regar nosso peito, com bom azeite: protege o coração e impermeabiliza as terras virgens e verdes. A caçula passeava pelos congelados, e avistava meio tonta, as carnes petrificadas e roxas encurraladas num saco á vácuo. Era insuportável. Sacaram, os dois, uma caixinha de dúzia de ovos, levariam pequenos úteros, que se secaram, e se colocava azeitonas e pedaços de queijo e presunto, regando tudo com o bom azeite e comeríamos as doces omeletes de sábado. Não levaram a carne petrificada, hoje não. E enquanto o gelo branco dos congeladores se confundia com a brancura do céu, um calor se prendia. O pai e a caçula, aguardavam com sua cesta, a moça do caixa, que batia teclas repetidas e secava o suor da testa.
Margot, a mais velha, veio de São Carlos num instante, como quem, quando menina, passeia por jardins à busca da rosa mais perfeita, rosa suferina. Mas não as colhia. A mais velha, não cresceu muito. Se concentrava na sua miudeza e preferia também as flores miúdas. Mamãe fica tão bem de branco, não se parece com gelo, nem com o céu de sábado. É um branco calmo, que se movimenta, que se permite ir e vir, um branco que se transforma, feito as paredes d’um hospital, onde a vida chega e se transforma. Mamãe buscara a mais velha na rodoviária, de algum jeito. Mas antes de casa, iriam ao centro, ver o que as lojas de jeans guardavam, talvez um tênis novo, de cor-de-rosa. Tomariam sorvete americano ou uma vitamina de morango, do Rei das Frutas, que mamãe gosta tanto, um morango suferino.
A noite que caía mais cedo, nesse sábado de chuva prometida, invertera os pólos do céu, e aquele branco denso deu lugar ao infinito negro da noite. Todos chegamos praticamente juntos: Eu c’uma folhinha de arruda presa no canto alto da orelha, feito um romano, que vem da guerra; papai e caçula com sacolas de omelete e pontuações de Futebol; mamãe e a mais velha, calçando um amontoado de plásticos, molas e tecidos subiam as acostumadas ruas enquanto secavam o suor das testas. Vovó pediu um pouco d’água e um copo que transborde guaraná, sentada no meio da sala c’um sorriso que parecia dizer: “Vocês não sabem de nada, meus filhos”. Nisso papai já batia os ovos, com azeitona, bacon, dando formato a omelete, a caçula discara no telefone teclas repetidas, enquanto secava o suor da testa. Eu estava ali, bem num canto da cozinha, na minha solidão verde, quando indaguei a mais velha se havia muita gente no Centro. Ela veio perto, com seu tênis que rangia no piso. Mas não havia ninguém: “Nem no Boca Loka, tinha gente”. Compreendi, tenho compreendido quase tudo, e sei que essa coisa que inda é verde, mas se perdeu, deve estar num canto suferino, que varia do azul do mar, ao vermelho da guerra.
Unesp estava cheia nesse sábado morno, era uma espécie de festa que perdura por horas, uma espécie de história com vários capítulos. Subi de carro, até a faculdade. E as pessoas bebiam e comiam e se falavam, enroscadas a bicicletas, motos barulhentas e saias de hippie bailando sobre o asfalto. Eu quereria me enroscar também, talvez encontre essa coisa que se perdeu, mas que inda cheira verde. Um amigo me tocara o braço, disse lhe que as coisas vão bem, contei-lhe que estava feliz, enquanto secava a caneta, me sorria feito um bobo, e falava que suas coisas caminhavam também. Ele não queria seguir, mas parece que procurava alguma coisa que é viva e se perdeu, é que no meio da mata, todos nós somos solitários. Compreendi, tenho compreendido quase tudo, aprendendo a inverter os pólos olhei pro céu, prometia chuva, chuva grossa, pra acalmar essa brancura tensa que se instalara do céu. Não gosto da palavra firmamento, me lembra uma coisa firme, segura, estável, talvez a um azul celeste caiba firmamento, mas um branco que se move, uma gira de cores que se confundem, prefiro o nome céu. Acendi um cigarro e sentei num banco de cimento, a espera que um vento novo me arraste pr’outro canto.
Mayara, a caçula, fora com Papai ao supermercado. As filas se esticavam até as prateleiras, e as moças do caixa batiam as teclas acostumadas enquanto secavam o suor do meio dia. O pai devia estar a procura de um bom azeite, era preciso regar nosso peito, com bom azeite: protege o coração e impermeabiliza as terras virgens e verdes. A caçula passeava pelos congelados, e avistava meio tonta, as carnes petrificadas e roxas encurraladas num saco á vácuo. Era insuportável. Sacaram, os dois, uma caixinha de dúzia de ovos, levariam pequenos úteros, que se secaram, e se colocava azeitonas e pedaços de queijo e presunto, regando tudo com o bom azeite e comeríamos as doces omeletes de sábado. Não levaram a carne petrificada, hoje não. E enquanto o gelo branco dos congeladores se confundia com a brancura do céu, um calor se prendia. O pai e a caçula, aguardavam com sua cesta, a moça do caixa, que batia teclas repetidas e secava o suor da testa.
Margot, a mais velha, veio de São Carlos num instante, como quem, quando menina, passeia por jardins à busca da rosa mais perfeita, rosa suferina. Mas não as colhia. A mais velha, não cresceu muito. Se concentrava na sua miudeza e preferia também as flores miúdas. Mamãe fica tão bem de branco, não se parece com gelo, nem com o céu de sábado. É um branco calmo, que se movimenta, que se permite ir e vir, um branco que se transforma, feito as paredes d’um hospital, onde a vida chega e se transforma. Mamãe buscara a mais velha na rodoviária, de algum jeito. Mas antes de casa, iriam ao centro, ver o que as lojas de jeans guardavam, talvez um tênis novo, de cor-de-rosa. Tomariam sorvete americano ou uma vitamina de morango, do Rei das Frutas, que mamãe gosta tanto, um morango suferino.
A noite que caía mais cedo, nesse sábado de chuva prometida, invertera os pólos do céu, e aquele branco denso deu lugar ao infinito negro da noite. Todos chegamos praticamente juntos: Eu c’uma folhinha de arruda presa no canto alto da orelha, feito um romano, que vem da guerra; papai e caçula com sacolas de omelete e pontuações de Futebol; mamãe e a mais velha, calçando um amontoado de plásticos, molas e tecidos subiam as acostumadas ruas enquanto secavam o suor das testas. Vovó pediu um pouco d’água e um copo que transborde guaraná, sentada no meio da sala c’um sorriso que parecia dizer: “Vocês não sabem de nada, meus filhos”. Nisso papai já batia os ovos, com azeitona, bacon, dando formato a omelete, a caçula discara no telefone teclas repetidas, enquanto secava o suor da testa. Eu estava ali, bem num canto da cozinha, na minha solidão verde, quando indaguei a mais velha se havia muita gente no Centro. Ela veio perto, com seu tênis que rangia no piso. Mas não havia ninguém: “Nem no Boca Loka, tinha gente”. Compreendi, tenho compreendido quase tudo, e sei que essa coisa que inda é verde, mas se perdeu, deve estar num canto suferino, que varia do azul do mar, ao vermelho da guerra.